A metalinguagem é um artifício constantemente utilizado nas narrativas cinematográficas. Desde clássicos fellinianos - por exemplo - a produções mais recentes (Adaptação, de Spike Jonze, é, talvez, meu favorito). O "filme dentro do filme" é, se bem manejado, um eficaz instrumento na elaboração e na prática da sétima arte. Por achar prazeroso ter a oportunidade de conhecer e entender um pouco mais sobre o fazer cinema, obras metalinguistícas sempre me atraem.
Adaptado a partir da série de quadrinhos American Splendor, Anti-Herói Americano retrata a vida e obra de Harvey Pekar (Paul Giamatti), autor das publicações acima citadas. Harvey trabalhava como arquivista em um hospital. Quando conheceu Robert Crumb (James Urbaniak), amante e escritor de graphic novels, percebeu a necessidade de criar suas próprias histórias. Mas, diferenciando-se dos demais, Harvey pôs nos gibis histórias de seu dia a dia em sociedade. Histórias sobre suas angústias, alegrias, frustrações. Diálogos e personagens reais que o autor reproduziu em diversos quadrinhos (ilustrados por outros artistas, já que Harvey, como o mesmo afirma, não consegue desenhar uma linha reta), cujo sucesso resultou em idas ao Late Night, de David Letterman. Apesar da maior visibilidade, Harvey permaneceu no underground literário, o que desencadeou inúmeros acontecimentos que são magistralmente "lidos" nesse filme.
Lidos por que todo o filme é contado "em forma" de gibi. Cenas com títulos, as figuras interagindo com os atores; todo o universo ilustrado nas obras de Harvey é trazido fielmente às telas. A narração em off, feita pelo Harvey real, é totalmente adequada (se ele conta suas histórias nos gibis, por que não contar suas histórias em seu filme?) e pode ser vista, também, como uma crítica aos que desprezam a presença da voz "guia". Ver, no filme, as pessoas que originaram aqueles personagens é algo interessantíssimo. A cena em que os reais Toby e Harvey conversam, enquanto os atores que os interpretam ficam em segundo plano, está impecável. Shari Springer Berman e Robert Pulcini dividem a direção - e o roteiro - com plena segurança e criatividade. É clara, mas sutil, a opinião dos diretores na fala de uma antiga colega de faculdade de Harvey, quando a mesma, comentando sobre um livro, diz que a obra "não tem aquele final feliz de Hollywood. Mas é verdadeiro, o que é raro hoje em dia".
As atuações extraídas do elenco são igualmente aplaudíveis. Paul Giamatti está sensacional como Harvey. As cenas em que o personagem aparece com a voz comprometida demonstram a capacidade cômica da ator - que também brilha nos momentos dramáticos. Hope Davis retrata otimamente a esposa de Harvey, Joyce Brabner, e Judah Friedlander faz o público rir interpretando o nerd assumido Toby Radloff, amigo do autor. A disponibilidade dos verdadeiros personagens também é digna de mérito; nem todos exporiam suas vidas como eles fizeram.
Um filme que exala metalinguagem, nos fazendo refletir sobre o próprio cinema e, fundamentalmente, sobre o viver, sobre as pessoas, sobre o filme dentro da vida de cada um e suas direções, roteiros e montagens. Uso, aqui, as palavras de Charlie Kauffman em Sinedóque, Nova York: "Há milhões de pessoas no mundo. E nenhuma delas são figurantes. Todas são protagonistas de suas próprias histórias". Apesar de a mídia enaltecer, por razões óbvias, o american way of life, minha (nossa) vida, simples e sem flashes, é, sim, tão importante quanto a do mendigo da esquina e a da modelo do ano. Posso não ter a atenção social recebida pela modelo, mas é a partir da minha vida "despercebida" que evoluirei como humano. E é nessa despercepção que amamos, choramos e rodamos, diariamente, nossa autobiografia.
Título Original: American Splendor
Direção e Roteiro: Shari Springer Berman e Robert Pulcini
Elenco: Paul Giamatti, Hope Davis, Judah Friedlander, James Urbaniak, Earl Billigns
Ano: 2003
Duração: 101 minutos
Um comentário:
MUITO bom, Alexandre.
Agora fiquei com vontade de ver...
Valeu a indicação!
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